St. Mary’s Catholic Center - 4710 North Fifth Street, Phoenix, Arizona.
Sou eu quem precisa narrar esta história porque de certa forma eu sou o
protagonista dela, e Erin é apenas minha marionete. Não possuo um nome ou uma
forma física, existo porque ela existe, eu sou o seu espelho, nós coexistimos.
Não me chateia o fato dela querer se livrar de mim, aliás me divirto com as
tentativas, elas me tornam mais forte e me dão mais controle sobre suas ações,
na verdade, - por favor não mencione isso a ela, lhe peço, aos sussurros e
ainda com direito a uma piscadela de molhar as anáguas – Quando a persuadi para
arrancar a vida daquele cretino namoradinho da infância, a quem saia as
escondidas para se encontrar, ela quis se matar em seguida, tentou se afogar na
banheira do internato mas, certamente, eu não poderia deixar que nada
acontecesse a minha garota. Na época ela tinha 13 anos e a fé de uma criança
ingênua.
Meus pensamentos constantemente não a deixam dormir durante a noite, eu
penso muito alto, ela ainda costuma dizer que são pesadelos.
Mas vamos do começo. Seus pais jamais poderiam tê-la, sequer poderiam
ter se conhecido, uma espécie de Romeu e Julieta séptico sem o final trágico e
o romance ardente, o que tiveram foi um instante impulsivo que terminou por
gerar uma criança de pai Geshstein e mãe Ishzhev. Para o gran-finale fora
acrescentado ainda o sangue da avó materna também, que curiosamente era
meio-Leschwell. Ambos estavam destinados a seus respectivos irmãos como forma
de preservar uma linhagem pura e precisavam jurar para a família que não se conheciam,
fugir era suicídio, além de desnecessário, sequer se amavam para isso. No
período da gestação, assim que tornou-se impossível esconder as mudanças do
corpo, sua mãe decidiu viajar pelo Arizona, com a desculpa de que era uma
viagem de negócios. Passando-se por necessitada, ficou aos cuidados das irmãs
do Instituto St. Mary, um internato com nome de Santo. Ela escapou sem dar
notícias durante a noite, assim que a criança completou um mês de vida, e só
regressou quando a filha completou cinco anos, por puro remorso durante um
breve momento, onde entregou-lhe uma espécie de diário que narrava a própria
vida e o rumo que ela provavelmente teria de tomar. O diário só foi lido quando
Erin completou dez anos. O pai nunca a visitou.
Era uma criança alegre e adorável, embora constantemente nossos diálogos
tenham incomodado as irmãs do convento, lembro-me perfeitamente de seu primeiro
castigo, nós rabiscamos as paredes brancas do templo reservado à missa com
símbolos que a instituição repreendia, e quando lhe perguntaram porque fizera
aquilo, Erin prontamente lhes respondera que fora porque eu pedi. Ela passou
aquela noite isolada do resto das garotas, rezando infindáveis e repetidas
preces que já lhe eram familiares. Os anos não lhe roubaram a esperança e a fé,
entretanto, eu era o veneno que destilava e corria em suas veias. Assim como na
noite que a fiz assassinar o amigo. Eles se viam ao pôr-do-sol e se aventuravam
juntos pelos arredores do internato e as sinuosas ruas de paralelepípedos da
cidade de Phoenix. Erin sempre me permitiu fácil acesso a seu acervo de
memórias, era muito simples fazê-la enxergar o que eu queria até mesmo fazê-la
acreditar que seu amigo era um monstro terrível e que ele lhe faria mal se não
fizéssemos algo. Assim como as tartarugas se escondem em seus cascos e os
gambás lançam um odor desagradável, Erin se escondia em algum lugar seguro
dentro da própria mente e me deixava assumir, quando se sentia em perigo.
Depois disso foi bem fácil, enrolei o cadarço de seu sapato ao redor do pescoço
do garoto magricela e o assisti se debater, ambos tinham a mesma força
corporal, embora eu fosse um terço mais forte afinal.
Erin, quando se deu conta do que fez, do que fizemos, entrou em completo
desespero, aí eu também tive de intervir para que ninguém suspeitasse e para me
assegurar de não termos deixado vestígios. Ela escreveu sua carta de admissão
para o Circo da Lua nesse mesmo dia, e partiu sem avisos quando fora
aceita.
É claro que ela teme abrir os olhos e descobrir mais um corpo, também
teme ao fechá-los, porque não gosta da escuridão. Luz e sombras, o dia e a
noite. Diríamos que é o que nos define melhor. Tem sangue em suas mãos. A todo
instante ela oscila entre a calmaria e a tempestade, ela olha por cima dos
ombros e acredita que pode estar sendo perseguida. Todos os dias espera poder
ter o controle completo sob suas ações.
O primeiro ano na Cova foi repleto de descobertas, descobrimos que
éramos mais forte do que aparentávamos fisicamente, e isso impressionava alguns
garotos que acabavam por servir como distração mais tarde. Foi então que ela
resolveu que para suportar a escuridão precisava estar acompanhada, só assim
ela conseguia me manter sob controle. Descobrimos também que Erin não se
preocupa com a dor, mas a dor alheia para ela é tortura, enquanto eu acho
extremamente divertido, e tenho certeza de que terceiros adorariam observar as
nuances temperamentais de uma mesma garota ao assistir
alguns novatos deixarem o Circo logo na primeira prova. E por último,
certamente, descobrimos que Erin tem fome de tudo: ela quer saber, sentir,
provar, amar, odiar e se entregar pra agora,
desesperadamente e em grande quantidade, sem meio termo e protelação, ela tem
urgência. Não chega a ser a mais popular da Cova, nem de longe, somos
extremamente seletivas, além do fato de Erin ter medo de provocar o sofrimento
alheio de certa forma. E por essa maldita questão é que estamos sempre em
discordância.
ELA.
Sua vida é uma batalha interna de luz e trevas constante, se uma das
forças um dia cederá para a outra assumir por completo é impossível saber. Não
consegue aceitar a própria natureza exatamente por não conseguir dominá-la, por
isso seguiu os concelhos de sua mãe e se inscreveu para o Circo da Lua, ainda
que estes concelhos tenham sido dados nas folhas de um velho diário de capa
preta. Erin possui uma força física inimaginável, nada extraordinária, porém é
além do que aparenta. Entretanto não possui boa resistência psicológica, ela é
rodeada por medos e traumas de infância que a desmoronam facilmente. A
aparência contradiz com o interior e suas atitudes oscilam o tempo todo, alguns
diriam que é bipolar, paranoica e até psicopata, quando na verdade, talvez seja
só muito indecisa sobre quem quer ser.
*Essa era a ficha de uma personagem minha em um RPG sobre uma escola-circo de alunos-demônios, ligados aos pecados capitais, de onde vem a origem do sangue deles; mas flopou em menos de uma semana, não quis perder a história, de qualquer forma.*